Gostos de uma tragdia agridoce 3n5p6l

O gosto cido da tragdia ainda est presente em Guidoval, pequena cidade da regio da Zona da Mata de Minas Gerais (298 km de Belo Horizonte). No dia 2 de janeiro, ela foi arrasada por uma forte chuva, que fez o rio que corta a cidade, o Xopot, transbordar violentamente. Entre seus 7.200 habitantes, cerca de 1.900 ficaram desabrigados ou desalojados. Trs pessoas morreram. Mais de 150 casas foram destrudas. S no houve mais mortes porque os moradores conseguiram avisar um ao outro no tempo suficiente para fugirem de suas casas, contam testemunhas.

Um ms depois, a cidade ainda luta para recuperar-se. A ponte que une os dois lados da cidade caiu. Muitas famlias continuam abrigadas emergencialmente em escolas e igrejas, e Guidoval no se livrou da grande quantidade de lixo. possvel ver sacolas plsticas e roupas presas em rvores, carros destrudos e mveis abandonados nas ruas.

As histrias dos moradores, no entanto, so uma mistura do cido da tragdia com o doce da gratido diante da sobrevivncia e da solidariedade de outros. Todo mundo perdeu, tanto rico quanto pobre, diz Cleber, enquanto ajuda a ex-esposa Zilda a tirar um entulho da pequena casa localizada na beira do rio. A filha de 13 anos dorme profundamente no quarto apertado. De um lado a sala, do outro um cmodo destrudo. Com parte do teto da residncia coberto por lona de plstico, Zilda reclama que hoje foi preciso preparar o almoo no quintal, j que no tem mais cozinha. Mas ao final da conversa, mais vontade, disse sorrindo: S sobrou beleza! O resto foi embora!. claro que o tom de brincadeira no esconde a feira dos entulhos em seu quintal, mas tambm revela o desejo de superao.

Geni Gonalves tem 57 anos e esta a segunda vez que precisa abandonar a casa por causa das enchentes. Esta segunda vez foi bem pior, diz ela. Aps a enchente, mudou-se para uma casa emprestada, uma das poucas que sobraram na ruela que d de frente para o rio. Sentada na calada com duas amigas, Geni observa a movimentao na casa frente, do sr. Tonico. L, toneladas de roupas, remdios e calados doados pela Igreja Universal de Ub esto sendo entregues para distribuio aos necessitados. Com a ajuda de vocs, o meu corao abriu como ondas do mar, poetiza aos entregadores o homem de 65 anos que viu muitas cenas trgicas e que chegou a ser resgatado por um helicptero do Corpo de Bombeiros.

A casa de sr. Tonico tambm fica na beira do rio e os vestgios da enchente esto em todo lugar. Lama, carros e portes amassados, bicicletas cheias de barro. Como um memorial, os ponteiros do relgio na parede, estagnados, indicam 10 minutos para meia-noite exatamente, segundo Tonico, o momento em que o rio parou de encher. Vi o rio cheio levando tudo embora: geladeiras, bois, carros, conta.

Os moradores denunciam que muitos aproveitam o momento para encarecer os preos. O bujo de gs que custa R$ 41,00 est sendo vendido por R$ 80,00. Um saco de arroz de 5 kl custa R$ 7,00, mas chegou a R$ 12,00, indigna-se Cleber.

O secretrio de obras do municpio, Luis Soares, conta que mais de 90% dos moradores vivem do outro lado do rio, exatamente a parte mais isolada. Esta a maior dificuldade, porque l que, na verdade, mora a maior parte da populao. Os comerciantes esto desesperados. Cerca de 300 pessoas esto sem poder trabalhar. Enquanto tenta liderar a limpeza da cidade, ele contabiliza os prejuzos, mas se alegra com a solidariedade. Disso no temos o que reclamar. Recebemos muitas doaes de cidades vizinhas. Muitas igrejas esto ajudando. Igrejas como Universal, Batista e Adventista foram citadas pelos moradores dentre as que enviaram doaes. De fato, a ajuda espontnea est vindo, mas muitas vezes de forma desordenada e sem compreenso da realidade atual. No h um centro operacional para receber doaes e distribu-las organizadamente. Os doadores, por sua vez, acabam enviando muitas coisas, como roupas, que no so mais to necessrias. Ao mesmo tempo, as famlias ainda precisam de filtros de gua, colches, talheres, as e mveis. Alm disso, necessidades mais estruturais, como reconstruo de casas e reforma de mveis, ainda no foram supridas. Uma boa e simples soluo ajudar com mutires de limpeza.

Segundo levantamento da Defesa Civil de Minas Gerais, 25% dos municpios do estado esto em situao de emergncia por causa das chuvas de janeiro. Mais de 110 mil pessoas tiveram de deixar suas casas, dessas 101.439 esto desalojadas --na casa de amigos e parentes-- e 8.900, desabrigadas --em abrigos pblicos. At agora, contabiliza-se que 25.594 casas foram danificadas e 1.354 foram destrudas pela chuva no Estado.

Olhar os vestgios da tragdia e ouvir as histrias dos moradores me fez sentir compaixo e uma dose de impotncia. Queremos e podemos ajudar, mas a verdade que tudo o que fizermos no vai apagar a lembrana. No entanto, ficou evidente que a esperana no pode ser subestimada. Ela est l: nas vozes, nos rostos, na f. Talvez seja apenas uma pintura cultural brasileira, sem razes profundas. Mas talvez seja um sinal, como um raio de sol entre nuvens aps a tempestade, de que a vida maior do que nosso poder de control-la. Talvez seja Deus mostrando seu rosto em meio perda e dizendo que est conosco, mesmo no vale da sombra da morte, todos os dias, at o final.