S o Evangelho realiza reconciliaes 2m123f

Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo... 2 Co 5.19

Este foi o verso bblico exposto em inmeros banners, nas mais diversas lnguas, pelos corredores do megaespao do centro de conferncia na Cidade do Cabo, frica do Sul, na conferncia de Lausanne 3. Traduzir o que foi o congresso, ou melhor, o movimento Lausanne naqueles dias, no uma tarefa fcil nem rpida, requer tempo e reflexo para assimilarmos os mltiplos temas e assuntos que atravessaram as plenrias e as diversas exposies divididas entre palestras, testemunhos, vdeos, danas, msicas, poemas, teatro e oraes, alm das discusses muito ricas nas mesas de debate.

Obviamente o tema principal do congresso girava em torno da evangelizao do mundo, mas aquilo que nos parecia a princpio to bvio se desdobrou numa complexidade de formas e ideias to diversas quanto o nmero de pases e lnguas ali representados. Contudo, a direo dada atravs do estudo do livro de Efsios conduziu, num certo tom espiritualista, uma reflexo acerca de um evangelho estritamente cristocntrico e das manifestaes e atuao que esse evangelho causa na vida humana como um todo. O evangelho , ento, dimensionado como a figura do prprio mistrio, nas palavras do apstolo Paulo, e dimensionado na prpria imagem de Cristo, naquele ao qual ainda no temos o como um todo, mas do qual podemos vivenciar e situar suas manifestaes e benevolncias em nossas vidas atravs de sua graa.

Ento, dentre os aspectos tratados acerca do evangelho, como a integridade da igreja, a transformao do mundo e dos valores humanos, a reconciliao foi, a partir do meu olhar de psiclogo, o tema que provocou a maior reflexo e comoo no auditrio, por meio de testemunhos impactantes sobre o desafio da reconciliao entre histrias, povos e pessoas ao redor do mundo. Embora em nosso contexto social e histrico no tenhamos questes to relevantes para pensarmos a reconciliao numa esfera social, por exemplo, como entre pases em constantes conflitos no Oriente Mdio, o tema nos afeta to diretamente quanto a qualquer povo ou nao do mundo. Desta forma, um dos testemunhos mais comoventes em Lausanne 3 foi o encontro entre uma moa palestina e um rapaz judeu. Ambos, agora convertidos, testemunham e vivenciam como evangelho de Cristo uma reconciliao que ultraa as barreiras sociopolticas dos seus povos; ambos testemunham de um evangelho que reconcilia os sentimentos mais internos de rejeio e dio que aprenderam a cultivar e nutrir dentro de si mesmos em relao um ao outro. Um sentimento, antes de ser aprendido e manifesto como cultura social em uma nao, originado e mantido na identidade e no carter de uma pessoa. Isso, para mim, foi o ponto nevrlgico da reflexo sobre uma das dimenses e atuao do evangelho de Cristo em ns; somos por natureza filhos da ira, irreconciliveis conosco mesmo, veis de nutrir e sustentar uma inimizade com aqueles que nos rodeiam. Por isso o evangelho de Cristo que transforma o mundo inicia-se no interior de uma subjetividade, reconcilia a estrutura psquica de uma pessoa atravessada e povoada por inmeros sentimentos contraditrios e perversos com o sentimento de amor proveniente do prprio carter de Deus.

O evangelho de Cristo reconcilia histrias pessoais, reconcilia pai com filho, esposa com esposo, reconcilia famlias, cidades, reconcilia sentimentos histricos que separam e trazem inimizades entre naes e continentes. Em um encontro ocorrido, inusitadamente, entre africanos e brasileiros, movido por uma carta de pedido de perdo pela histria da escravido no Brasil, uma mulher de um pas africano representando todas as mes africanas que tiveram seus filhos e esposos capturados e levados pelo mercado de escravos, expressou o sentimento de dor e angstia daquelas mulheres por uma prtica to desumana e perversa. De imediato, todos ns naquele momento pudemos vivenciar aquele sentimento de dor e desespero daquelas mulheres que se transmitia e perpetuava atravs da cultura e sociedade africana. A proferio de perdo atravs daquela mulher comoveu todos os presentes naquele lugar; entre muitas lgrimas, todos se aglomeraram e se entrelaaram num grande grupo, e, num coro de orao, clamavam a Deus por uma graa especial, por uma reconciliao, paz, sobre aquele sentimento compartilhado.

Isso no tem dimenso, trata-se do puro mistrio de Deus para ns; para isso no temos como planejar, pensar ou manipular o evangelho de Cristo. O evangelho para ser vivido, praticado, rotinizado em nossa conduta diria. Mais do que isso, o evangelho de Cristo promove o fazer as pazes conosco mesmo, a nos perdoar e, consequentemente, fazer o mesmo com aquele que nos rodeia. O evangelho de Cristo confronta os sentimentos indesejveis e mais profundos da nossa natureza e, concomitantemente, todas as questes que atravessam a humanidade, como a pobreza, a orfandade, entre muitos outros. Pois, no fechamento dos tempos, todas as coisas, todos os sentimentos, todas as relaes, todos os povos sero reconciliados, convertidos e convergidos em Deus, por intermdio de Cristo, tanto no tempo futuro quanto na temporalidade de uma vida pessoal.