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20 de setembro de 2021
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Os cristos e a democracia em tempos turbulentos 3i2413
Srie Democracia e F Crist
Por Paul Freston
Artigo publicado na Ultimato 370, maro/abril de 2018.
Os cristos sabem que a universalidade do pecado uma das grandes justificativas da democracia. Logo, no se deixam consumir pelo dio poltico, mas devem ser exemplo de uma comunidade no unida politicamente, mas unida no tratamento cristo das diferenas polticas.
Tudo indica que a crise brasileira se arrastar ainda por um bom tempo. Embora a dimenso macroeconmica possa melhorar, as dimenses polticas e sociais no esto, por enquanto, promissoras. Na pior das hipteses, as divises podem aprofundar-se ainda mais no processo eleitoral deste ano, colocando em perigo a legitimidade das instituies vitais democracia.
Diante disso, dois grandes desafios se apresentam aos cristos, sobretudo aos de confisso evanglica. O primeiro desafio para fora: como comportar-se como cidados de um pas em crise econmica e poltica, e cada vez mais pluralista em termos sociais e comportamentais. O segundo desafio para dentro: como comportar-se como membros de uma comunidade religiosa j muito numerosa e bastante diversa em termos sociais, econmicos e polticos. Dois desafios que, no final, se resumem em um s: como compreender e viver a dimenso pblica do discipulado cristo no esprito de Cristo.
Para fora: o desafio das incertezas
Comecemos pelo primeiro desafio, para fora. Multiplicam-se as anlises evanglicas que falam dos dias atuais como acentuadamente de incerteza e, portanto, excepcionalmente desafiadores para os cristos. No devemos pensar assim. O normal so tempos de incerteza, isto , de pluralismo social de valores e de estilos de vida. S no assim sob alguma forma de autoritarismo poltico, seja de fundo religioso ou no. O cristianismo se expandiu, por mais de trezentos anos, por um imprio romano extremamente pluralista em muitos sentidos, muito mais do que o Brasil de hoje. Tal pluralismo no causou nos primeiros cristos o saudosismo por uma poca mais uniforme, nem criou demandas por um regime mais repressivo.
Nem (pelo menos, se prestaram ateno aos evangelhos) criou o destempero verbal contra os vulnerveis e marginalizados. Jesus xingou somente os poderosos da sua poca (chamando-os de raposas e sepulcros caiados), e nunca os vulnerveis. Quanto mais vulnervel o grupo ou pessoa, maior o seu cuidado com a linguagem usada. Ilustrativo disso o incidente da mulher adltera (Jo 8.1-11), duplamente vulnervel por ser mulher e adltera numa sociedade patriarcal.
Claro, naqueles tempos no havia a globalizao e a internet. A liberdade de expresso ameaada no s pelo poder poltico, mas tambm pelas tenses sociais, as quais tm aumentado muito em um mundo encolhido pela migrao e pela internet, em que todos os nossos prximos encontram mais espao para se expressarem. Esse mundo encolhido exige de ns o uso de uma linguagem ponderada e respeitosa, evitando caricaturar o outro, mesmo (e sobretudo) na hora de criticar. Isso no render-se ao politicamente correto; reconhecer a ubiquidade do pecado e a viso bblica do uso responsvel da lngua.
Uma das tentaes desse mundo encolhido, para os evanglicos, de oscilar entre o impulso autoritrio e a postura de vtima perseguida. Exemplo disso (apenas o mais recente) foi o caso em que o governo esquerdista de Evo Morales na Bolvia teria criminalizado a evangelizao. Na realidade, como explicou Marcelo Vargas no site da Ultimato, o novo Cdigo Penal estava mal redigido e ambguo (e constitua ameaa democracia, no dizer de Vargas), mas no criminalizava a evangelizao. A reao evanglica foi fruto da desinformao, do alarmismo e sensacionalismo [...] influenciada pelos meios de comunicao e pelos partidos de oposio. Incidentes como esse fazem muito mal reputao da comunidade evanglica. Para a sociedade, na melhor das hipteses indicam uma comunidade mal assessorada; na pior das hipteses, uma comunidade autocentrada e paranoica, e at manipulada por foras polticas inescrupulosas.
O estranho disso que os evanglicos tm toda a base teolgica para ser o segmento menos vulnervel a tais desvios ou manipulaes. So familiarizados com a viso bblica da radicalidade do pecado, que afeta no apenas todos os indivduos, mas tambm todos os grupos e instituies. Conhecem a viso equilibrada de renovao institucional e renovao individual que fundamenta o Pentateuco e os profetas. Sabem que a universalidade do pecado uma das grandes justificativas da democracia; ningum merece ter poderes ilimitados e no supervisionados sobre seus semelhantes. A f crist realista: onde houver grande desigualdade, haver opressores e oprimidos, e tender a aumentar a corrupo.
O realismo otimista dos cristos
A f crist se caracteriza tambm por um otimismo realista na sua avaliao da possibilidade de melhorar o mundo. Nenhuma realizao humana est isenta dos efeitos do pecado, mas a graa comum de Deus tambm est presente em todos os espaos da vida. Por isso, as instrues de Moiss ao povo recm-liberto incluam exortaes generosidade individual, mas tambm mecanismos legais (como a lei do Ano do Jubileu e a lei do Ano Sabtico), para impedir que a estrutura social justa cedesse ao longo do tempo a estruturas de desigualdade e opresso.
A priorizao do ser humano nos leva questo dos direitos humanos. Os cristos, longe de fazerem eco narrativa secularista do desenvolvimento dos direitos humanos (ou seja, que esses nada devem religio e, em vez disso, foram conquistados contra a oposio religiosa), deveriam apoiar a narrativa de muitos acadmicos de que o conceito moderno de direitos humanos deve muito s religies e, sobretudo, herana bblica. Deveriam, tambm, entender que a viabilizao dos direitos humanos depende no somente de um arcabouo legal, mas tambm de um trabalho cultural, pelo qual o direito do outro inculcado como o meu dever, e o meu direito, como o dever do outro.
A dificuldade de conviver numa sociedade pluralista
Com isso, voltamos ao nosso ponto de partida, a dificuldade de conviver numa sociedade pluralista. A liberdade de expresso um dos direitos mais fundamentais do ser humano, sem o qual os outros direitos se tornam impossveis ou difceis de exercer. Sem a liberdade de expresso, no h como navegar pacificamente a extrema diversidade de experincias humanas; no h como desenvolver a boa governana; e no h como reconhecer e responder verdade em todos os campos, inclusive o religioso. A absoluta necessidade dessa liberdade foi reconhecida muito cedo na histria crist. Por volta do ano 200, o telogo Tertuliano inventou o prprio conceito de liberdade religiosa. Disse ele: um direito humano fundamental, um privilgio da natureza, que todo ser humano possa adorar segundo as suas prprias convices. A religio de uma pessoa no ajuda nem prejudica outra pessoa.
Essa convico (lamentavelmente abandonada por boa parte do cristianismo posterior, uma vez em aliana idlatra com o Estado) fundamental para a relao entre f e poltica. Pois, para muitos crticos, o cristianismo, como, alis, todos os monotesmos, seria essencialmente intolerante e autoritrio. Entretanto, essa abordagem essencialista falha. O que importa no o monotesmo em si, nem a reivindicao de possuir uma revelao divina. O que mais importa so duas outras questes: o que uma determinada religio diz que deve ser feito com a descrena e os descrentes, e como concebe a relao entre descrena e os direitos sociais e polticos dos descrentes. A resposta que deram os primeiros cristos, baseada em sua leitura do Novo Testamento (e do Antigo luz do Novo), fundamenta at hoje a verdadeira convivncia crist em sociedades to pluralistas quanto o antigo mundo helnico.
Um ltimo ponto essencial, antes de armos ao segundo desafio. Em matria de poltica, o cristianismo se caracteriza por certo recato, um no dogmatismo, um amplo espao livre de discordncia legtima entre os cristos fiis. A razo bsica disso so as circunstncias do seu surgimento. O cristianismo no nasce exercendo o poder poltico; nasce como uma comunidade voluntria e transnacional. O Novo Testamento foi escrito para uma comunidade que no controlava territrio, no possua poder poltico e no poderia influenciar a legislao pblica. O Antigo Testamento, por outro lado, foi escrito para uma comunidade nacional que de fato lidava com as questes de territrio, lei, poder e fora. Mas nenhum pas hoje, por mais cristos que tenha, est na situao do Israel do Antigo Testamento.
Para dentro: o necessrio recato poltico
O resultado disso certa falta de autoconfiana poltica no cristianismo, uma hesitao em dar receitas polticas em nome da f. O que nos leva ao segundo desafio, para dentro.
O recato poltico prprio do cristianismo nem sempre observado pelos cristos, sobretudo quando estes so solicitados a colocar a sua f a servio de determinado interesse poltico. Isso pode acontecer (e de fato, j aconteceu) em todos os pontos do espectro poltico, mas hoje acontece mais direita do espectro. Da a percepo, por boa parte da sociedade brasileira, de uma subida poltica evanglica fortemente de direita. Essa percepo, fundamentada na atuao das bancadas evanglicas no Congresso, pode no corresponder exatamente postura mdia dos evanglicos comuns; mas, de qualquer forma, os atuais problemas do evangelicalismo norte-americano (esvaziamento dos jovens, descontentes com uma politizao vista como excessiva, estreita, autoritria e ultraconservadora) nos servem de alerta. Aprendamos, enquanto tempo, que a sabedoria e a diversidade polticas so fundamentais para a sade da igreja. Tenhamos a sabedoria de escolher bem as batalhas. E tenhamos a conscincia da diversidade poltica evanglica que de fato existe, tendo o cuidado interno de no exigir uma ortodoxia poltica de toda a imensa comunidade evanglica, e a preocupao externa de esclarecer sociedade a respeito da pluralidade poltica evanglica e seu compromisso com as normas democrticas.
importante que os cristos no se deixem consumir pelo dio poltico, mas que deem exemplo de uma comunidade no unida politicamente (o que, alm de impossvel, seria indesejvel porque decorreria somente de uma unidade manipulada), mas unida no tratamento cristo das diferenas polticas. Lembremos as exortaes bblicas de amar a todos, mas especialmente os irmos na f (como Joo 13.34-35, em que a capacidade dos cristos de se amarem mutuamente o fator mais importante na sua reputao diante do mundo; e Glatas 6.10, em que fazer o bem recomendado, acima de tudo, aos que compartem da mesma f). Pois especialmente tentador nutrir uma antipatia para com aqueles que nos so mais prximos, mas que discordam de ns! Se os cristos no forem capazes de viver essa tica do amor, dentro da comunidade crist e no meio da tormenta poltica que nos divide, no teremos nada a contribuir sociedade.
Leia mais:
O esprito democrtico e a espiritualidade crist
Divididos e raivosos
A tentao de no amar quem discorda das minhas opinies polticas
Por Paul Freston
Artigo publicado na Ultimato 370, maro/abril de 2018.

Tudo indica que a crise brasileira se arrastar ainda por um bom tempo. Embora a dimenso macroeconmica possa melhorar, as dimenses polticas e sociais no esto, por enquanto, promissoras. Na pior das hipteses, as divises podem aprofundar-se ainda mais no processo eleitoral deste ano, colocando em perigo a legitimidade das instituies vitais democracia.
Diante disso, dois grandes desafios se apresentam aos cristos, sobretudo aos de confisso evanglica. O primeiro desafio para fora: como comportar-se como cidados de um pas em crise econmica e poltica, e cada vez mais pluralista em termos sociais e comportamentais. O segundo desafio para dentro: como comportar-se como membros de uma comunidade religiosa j muito numerosa e bastante diversa em termos sociais, econmicos e polticos. Dois desafios que, no final, se resumem em um s: como compreender e viver a dimenso pblica do discipulado cristo no esprito de Cristo.
Para fora: o desafio das incertezas
Comecemos pelo primeiro desafio, para fora. Multiplicam-se as anlises evanglicas que falam dos dias atuais como acentuadamente de incerteza e, portanto, excepcionalmente desafiadores para os cristos. No devemos pensar assim. O normal so tempos de incerteza, isto , de pluralismo social de valores e de estilos de vida. S no assim sob alguma forma de autoritarismo poltico, seja de fundo religioso ou no. O cristianismo se expandiu, por mais de trezentos anos, por um imprio romano extremamente pluralista em muitos sentidos, muito mais do que o Brasil de hoje. Tal pluralismo no causou nos primeiros cristos o saudosismo por uma poca mais uniforme, nem criou demandas por um regime mais repressivo.
Nem (pelo menos, se prestaram ateno aos evangelhos) criou o destempero verbal contra os vulnerveis e marginalizados. Jesus xingou somente os poderosos da sua poca (chamando-os de raposas e sepulcros caiados), e nunca os vulnerveis. Quanto mais vulnervel o grupo ou pessoa, maior o seu cuidado com a linguagem usada. Ilustrativo disso o incidente da mulher adltera (Jo 8.1-11), duplamente vulnervel por ser mulher e adltera numa sociedade patriarcal.
Claro, naqueles tempos no havia a globalizao e a internet. A liberdade de expresso ameaada no s pelo poder poltico, mas tambm pelas tenses sociais, as quais tm aumentado muito em um mundo encolhido pela migrao e pela internet, em que todos os nossos prximos encontram mais espao para se expressarem. Esse mundo encolhido exige de ns o uso de uma linguagem ponderada e respeitosa, evitando caricaturar o outro, mesmo (e sobretudo) na hora de criticar. Isso no render-se ao politicamente correto; reconhecer a ubiquidade do pecado e a viso bblica do uso responsvel da lngua.
Uma das tentaes desse mundo encolhido, para os evanglicos, de oscilar entre o impulso autoritrio e a postura de vtima perseguida. Exemplo disso (apenas o mais recente) foi o caso em que o governo esquerdista de Evo Morales na Bolvia teria criminalizado a evangelizao. Na realidade, como explicou Marcelo Vargas no site da Ultimato, o novo Cdigo Penal estava mal redigido e ambguo (e constitua ameaa democracia, no dizer de Vargas), mas no criminalizava a evangelizao. A reao evanglica foi fruto da desinformao, do alarmismo e sensacionalismo [...] influenciada pelos meios de comunicao e pelos partidos de oposio. Incidentes como esse fazem muito mal reputao da comunidade evanglica. Para a sociedade, na melhor das hipteses indicam uma comunidade mal assessorada; na pior das hipteses, uma comunidade autocentrada e paranoica, e at manipulada por foras polticas inescrupulosas.
O estranho disso que os evanglicos tm toda a base teolgica para ser o segmento menos vulnervel a tais desvios ou manipulaes. So familiarizados com a viso bblica da radicalidade do pecado, que afeta no apenas todos os indivduos, mas tambm todos os grupos e instituies. Conhecem a viso equilibrada de renovao institucional e renovao individual que fundamenta o Pentateuco e os profetas. Sabem que a universalidade do pecado uma das grandes justificativas da democracia; ningum merece ter poderes ilimitados e no supervisionados sobre seus semelhantes. A f crist realista: onde houver grande desigualdade, haver opressores e oprimidos, e tender a aumentar a corrupo.
O realismo otimista dos cristos
A f crist se caracteriza tambm por um otimismo realista na sua avaliao da possibilidade de melhorar o mundo. Nenhuma realizao humana est isenta dos efeitos do pecado, mas a graa comum de Deus tambm est presente em todos os espaos da vida. Por isso, as instrues de Moiss ao povo recm-liberto incluam exortaes generosidade individual, mas tambm mecanismos legais (como a lei do Ano do Jubileu e a lei do Ano Sabtico), para impedir que a estrutura social justa cedesse ao longo do tempo a estruturas de desigualdade e opresso.
Nenhuma realizao humana est isenta dos efeitos do pecado, mas a graa comum de Deus tambm est presente em todos os espaos da vida
O realismo otimista do cristianismo impede que, mesmo em momentos de decepo com alguns antigos portadores de determinados ideais, percamos de vista os ideais polticos incentivados pela Bblia, tais como a justia e a solidariedade, a priorizao dos mais fracos e necessitados para diminuir a extrema desigualdade, o valor fundamental da democracia como reflexo tanto da antropologia crist como do carter de Deus expresso na maneira como ele trata a humanidade desde o comeo e a rejeio da idolatria tanto do Estado quanto do mercado (parafraseando Marcos 2.27: O ser humano no foi feito para o sbado/Estado/mercado, mas sim o sbado/Estado/mercado para o ser humano). A histria d muitas voltas, e o cristo deve evitar curvar-se diante de todos os modismos polticos. Sacrificar o ser humano no altar do deus-mercado to abominvel quanto sacrific-lo no altar do deus-Estado.A priorizao do ser humano nos leva questo dos direitos humanos. Os cristos, longe de fazerem eco narrativa secularista do desenvolvimento dos direitos humanos (ou seja, que esses nada devem religio e, em vez disso, foram conquistados contra a oposio religiosa), deveriam apoiar a narrativa de muitos acadmicos de que o conceito moderno de direitos humanos deve muito s religies e, sobretudo, herana bblica. Deveriam, tambm, entender que a viabilizao dos direitos humanos depende no somente de um arcabouo legal, mas tambm de um trabalho cultural, pelo qual o direito do outro inculcado como o meu dever, e o meu direito, como o dever do outro.
A dificuldade de conviver numa sociedade pluralista
Com isso, voltamos ao nosso ponto de partida, a dificuldade de conviver numa sociedade pluralista. A liberdade de expresso um dos direitos mais fundamentais do ser humano, sem o qual os outros direitos se tornam impossveis ou difceis de exercer. Sem a liberdade de expresso, no h como navegar pacificamente a extrema diversidade de experincias humanas; no h como desenvolver a boa governana; e no h como reconhecer e responder verdade em todos os campos, inclusive o religioso. A absoluta necessidade dessa liberdade foi reconhecida muito cedo na histria crist. Por volta do ano 200, o telogo Tertuliano inventou o prprio conceito de liberdade religiosa. Disse ele: um direito humano fundamental, um privilgio da natureza, que todo ser humano possa adorar segundo as suas prprias convices. A religio de uma pessoa no ajuda nem prejudica outra pessoa.
Essa convico (lamentavelmente abandonada por boa parte do cristianismo posterior, uma vez em aliana idlatra com o Estado) fundamental para a relao entre f e poltica. Pois, para muitos crticos, o cristianismo, como, alis, todos os monotesmos, seria essencialmente intolerante e autoritrio. Entretanto, essa abordagem essencialista falha. O que importa no o monotesmo em si, nem a reivindicao de possuir uma revelao divina. O que mais importa so duas outras questes: o que uma determinada religio diz que deve ser feito com a descrena e os descrentes, e como concebe a relao entre descrena e os direitos sociais e polticos dos descrentes. A resposta que deram os primeiros cristos, baseada em sua leitura do Novo Testamento (e do Antigo luz do Novo), fundamenta at hoje a verdadeira convivncia crist em sociedades to pluralistas quanto o antigo mundo helnico.
Um ltimo ponto essencial, antes de armos ao segundo desafio. Em matria de poltica, o cristianismo se caracteriza por certo recato, um no dogmatismo, um amplo espao livre de discordncia legtima entre os cristos fiis. A razo bsica disso so as circunstncias do seu surgimento. O cristianismo no nasce exercendo o poder poltico; nasce como uma comunidade voluntria e transnacional. O Novo Testamento foi escrito para uma comunidade que no controlava territrio, no possua poder poltico e no poderia influenciar a legislao pblica. O Antigo Testamento, por outro lado, foi escrito para uma comunidade nacional que de fato lidava com as questes de territrio, lei, poder e fora. Mas nenhum pas hoje, por mais cristos que tenha, est na situao do Israel do Antigo Testamento.
Para dentro: o necessrio recato poltico
O resultado disso certa falta de autoconfiana poltica no cristianismo, uma hesitao em dar receitas polticas em nome da f. O que nos leva ao segundo desafio, para dentro.
O recato poltico prprio do cristianismo nem sempre observado pelos cristos, sobretudo quando estes so solicitados a colocar a sua f a servio de determinado interesse poltico. Isso pode acontecer (e de fato, j aconteceu) em todos os pontos do espectro poltico, mas hoje acontece mais direita do espectro. Da a percepo, por boa parte da sociedade brasileira, de uma subida poltica evanglica fortemente de direita. Essa percepo, fundamentada na atuao das bancadas evanglicas no Congresso, pode no corresponder exatamente postura mdia dos evanglicos comuns; mas, de qualquer forma, os atuais problemas do evangelicalismo norte-americano (esvaziamento dos jovens, descontentes com uma politizao vista como excessiva, estreita, autoritria e ultraconservadora) nos servem de alerta. Aprendamos, enquanto tempo, que a sabedoria e a diversidade polticas so fundamentais para a sade da igreja. Tenhamos a sabedoria de escolher bem as batalhas. E tenhamos a conscincia da diversidade poltica evanglica que de fato existe, tendo o cuidado interno de no exigir uma ortodoxia poltica de toda a imensa comunidade evanglica, e a preocupao externa de esclarecer sociedade a respeito da pluralidade poltica evanglica e seu compromisso com as normas democrticas.
Aprendamos, enquanto tempo, que a sabedoria e a diversidade polticas so fundamentais para a sade da igreja. Tenhamos a sabedoria de escolher bem as batalhas.
importante que os cristos no se deixem consumir pelo dio poltico, mas que deem exemplo de uma comunidade no unida politicamente (o que, alm de impossvel, seria indesejvel porque decorreria somente de uma unidade manipulada), mas unida no tratamento cristo das diferenas polticas. Lembremos as exortaes bblicas de amar a todos, mas especialmente os irmos na f (como Joo 13.34-35, em que a capacidade dos cristos de se amarem mutuamente o fator mais importante na sua reputao diante do mundo; e Glatas 6.10, em que fazer o bem recomendado, acima de tudo, aos que compartem da mesma f). Pois especialmente tentador nutrir uma antipatia para com aqueles que nos so mais prximos, mas que discordam de ns! Se os cristos no forem capazes de viver essa tica do amor, dentro da comunidade crist e no meio da tormenta poltica que nos divide, no teremos nada a contribuir sociedade.
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O esprito democrtico e a espiritualidade crist
Divididos e raivosos
A tentao de no amar quem discorda das minhas opinies polticas
Autor de "Religio e Poltica, sim; Igreja e Estado, no" e "Nem Monge, Nem Executivo - Jesus: um modelo de espiritualidade invertida", ambos pela Editora Ultimato; e "Neemias, Um Profissional a Servio do Reino" e "Quem Perde, Ganha", pela ABU Editora, Paul Freston, ingls naturalizado brasileiro, doutor em sociologia pela UNICAMP. professor do programa de ps-graduao em cincias sociais na Universidade Federal de So Carlos e, desde 2003, professor catedrtico de sociologia no Calvin College, nos Estados Unidos. colunista da revista Ultimato.
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