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13 de agosto de 2021
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Castro Alves: o poeta piedoso 4af4b
Por Gladir Cabral
Nascido em 1847, numa fazenda prxima a Salvador, e falecido em 1871, com apenas 24 anos, o poeta Castro Alves figura entre nossos escritores mais amados e celebrados. Nele o sofrimento pessoal (a orfandade, o suicdio do irmo mais novo, problemas de sade e projetos adiados) se mistura ao sofrimento social percebido ao seu redor: a opresso dos escravos e a imoralidade do sistema escravagista.
Sua poesia est encharcada desse sofrimento humano e do compromisso com a causa da libertao dos escravos, que ele jamais veria realizar-se. Castro Alves emprestou sua voz a um movimento extremamente importante para sua poca, embora o Brasil tivesse entrado com atraso nas iniciativas pela libertao dos escravos. Ainda que tardiamente e antecedido por outros poetas europeus e americanos, o poeta se destaca por seu engajamento social e sua literatura libertria.
Para alguns intelectuais brasileiros, como Andrade Muricy e Mrio de Andrade, Castro Alves tanto inspira quanto aborrece, tanto impressiona e comove quanto fatiga. E o que h de mais cansativo na poesia de Castro Alves, segundo Mrio de Andrade, sua piedade, que o impede de ver a igualdade humana como uma necessidade moral, em vez de apenas como uma conquista. Que Castro Alves tenha dado a sua lira por essa causa me satisfaz, me orgulha e o exalta -- afirma Mrio de Andrade, sem que tambm faa crticas ingenuidade ideolgica do poeta.
A poesia de Castro Alves pode ser chamada de piedosa, sim, no sentido de expressar solidariedade para com os sofredores, os abandonados, os assassinados, os torturados, os explorados, os pobres e miserveis, os infelizes todos; mas tambm piedosa no sentido de respeito e amor pelas coisas divinas, devoo. Boa parte de sua poesia salmo de lamento e hino de adorao, temperado com alguma esperana de redeno. Em O Navio Negreiro, o poeta contempla a agem do barco traficante atravessando os mares e lamenta: Senhor Deus dos desgraados! / Dizei-me vs, Senhor Deus! / Se loucura... se verdade / Tanto horror assim perante os cus?!.
Diferentemente do poeta alemo Heinrich Heine, que utiliza uma linguagem e uma perspectiva irnica e crtica para descrever a agem do navio negreiro, Castro Alves transforma seu inconformismo em lamento, em orao. essa escolha pela piedade que Mrio de Andrade no perdoa, como se a piedade impedisse o respeito pelo negro ou impossibilitasse uma autocrtica pelo escritor. Entretanto, tal crtica de Andrade parece carregada de preconceito em relao f, pois pressupe que toda postura religiosa por si mesmo alienante e alienada, um pio para o povo.
Muitos smbolos e imagens bblicas aparecem nos poemas, como a figura de Agar, a serva de Abrao e me de Ismael, expulsa de casa e abandonada no deserto. Agar torna-se smbolo do povo africano e sua dispora, seu abandono. Ela tambm aparece no poema O Navio Negreiro, ao descrever as mulheres transportadas no poro do navio: So mulheres desgraadas, / Como Agar o foi tambm. / Que sedentas, alquebradas, / De longe... bem de longe vm... / Trazendo com tbios os, / Filhos e algemas nos braos, / N"alma -- lgrima e fel... / Como Agar sofrendo tanto, / Que nem o leito de pranto / Tm que dar para Ismael.
Outra imagem muito recorrente na poesia de Castro Alves a da mater dolorosa, da me sofredora que traz nos braos seu filho que dorme o sono eterno / No bero imenso, que se chama -- cu. Maria carregando em si o corpo inerte de Cristo, Raquel chorando por seus filhos, a mulher escrava chorando a separao do filho querido. So cenas de cortante dramaticidade e indignao.
Nesse mesmo poema, h um indcio de que o poeta entende a escravido criticamente como estando ancorada em um sistema econmico historicamente construdo. Em dado momento do poema, ele questiona o papel do governo brasileiro em relao instituio da escravido naqueles tempos de imprio: Existe um povo que a bandeira empresta / Pra cobrir tanta infmia e covardia!. E no verso seguinte que ele escreve as famosas linhas: Auri-verde pendo da minha terra, / Que a brisa do Brasil beija e balana, / Estandarte que luz do sol encerra / As promessas divinas de esperana... [] Antes te houvessem roto na batalha, / Que servires a um povo de mortalha!. Ou seja, a potica de Castro Alves alcana uma dimenso poltica explcita, sua piedade no alienada e metafsica, mas concreta e histrica. O autor no subscreve um patriotismo alienado e cego em relao injustia.
A piedade de Castro Alves tambm o torna crtico em relao s classes sociais mais abastadas, representados pela figura do sibarita, do comerciante rico e abusado que mora em seu palcio altivo, imenso, / De mosaicos brilhantes embutido. Ele tambm questiona a prpria instituio religiosa oficial do Brasil, cujo sacerdote / As espduas fustiga com o chicote / Ao cativo infeliz.
H um risco, sim, na literatura que dialoga com smbolos religiosos, o risco da artificialidade, da retrica vazia e da alienao. No caso de Castro Alves, no entanto, a poesia sobrevive tentao do formalismo vazio ou do jogo retrico e o poema vira salmo, profecia e orao.
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Nascido em 1847, numa fazenda prxima a Salvador, e falecido em 1871, com apenas 24 anos, o poeta Castro Alves figura entre nossos escritores mais amados e celebrados. Nele o sofrimento pessoal (a orfandade, o suicdio do irmo mais novo, problemas de sade e projetos adiados) se mistura ao sofrimento social percebido ao seu redor: a opresso dos escravos e a imoralidade do sistema escravagista.

Para alguns intelectuais brasileiros, como Andrade Muricy e Mrio de Andrade, Castro Alves tanto inspira quanto aborrece, tanto impressiona e comove quanto fatiga. E o que h de mais cansativo na poesia de Castro Alves, segundo Mrio de Andrade, sua piedade, que o impede de ver a igualdade humana como uma necessidade moral, em vez de apenas como uma conquista. Que Castro Alves tenha dado a sua lira por essa causa me satisfaz, me orgulha e o exalta -- afirma Mrio de Andrade, sem que tambm faa crticas ingenuidade ideolgica do poeta.
A poesia de Castro Alves pode ser chamada de piedosa, sim, no sentido de expressar solidariedade para com os sofredores, os abandonados, os assassinados, os torturados, os explorados, os pobres e miserveis, os infelizes todos; mas tambm piedosa no sentido de respeito e amor pelas coisas divinas, devoo. Boa parte de sua poesia salmo de lamento e hino de adorao, temperado com alguma esperana de redeno. Em O Navio Negreiro, o poeta contempla a agem do barco traficante atravessando os mares e lamenta: Senhor Deus dos desgraados! / Dizei-me vs, Senhor Deus! / Se loucura... se verdade / Tanto horror assim perante os cus?!.
Diferentemente do poeta alemo Heinrich Heine, que utiliza uma linguagem e uma perspectiva irnica e crtica para descrever a agem do navio negreiro, Castro Alves transforma seu inconformismo em lamento, em orao. essa escolha pela piedade que Mrio de Andrade no perdoa, como se a piedade impedisse o respeito pelo negro ou impossibilitasse uma autocrtica pelo escritor. Entretanto, tal crtica de Andrade parece carregada de preconceito em relao f, pois pressupe que toda postura religiosa por si mesmo alienante e alienada, um pio para o povo.
Muitos smbolos e imagens bblicas aparecem nos poemas, como a figura de Agar, a serva de Abrao e me de Ismael, expulsa de casa e abandonada no deserto. Agar torna-se smbolo do povo africano e sua dispora, seu abandono. Ela tambm aparece no poema O Navio Negreiro, ao descrever as mulheres transportadas no poro do navio: So mulheres desgraadas, / Como Agar o foi tambm. / Que sedentas, alquebradas, / De longe... bem de longe vm... / Trazendo com tbios os, / Filhos e algemas nos braos, / N"alma -- lgrima e fel... / Como Agar sofrendo tanto, / Que nem o leito de pranto / Tm que dar para Ismael.
Outra imagem muito recorrente na poesia de Castro Alves a da mater dolorosa, da me sofredora que traz nos braos seu filho que dorme o sono eterno / No bero imenso, que se chama -- cu. Maria carregando em si o corpo inerte de Cristo, Raquel chorando por seus filhos, a mulher escrava chorando a separao do filho querido. So cenas de cortante dramaticidade e indignao.
Nesse mesmo poema, h um indcio de que o poeta entende a escravido criticamente como estando ancorada em um sistema econmico historicamente construdo. Em dado momento do poema, ele questiona o papel do governo brasileiro em relao instituio da escravido naqueles tempos de imprio: Existe um povo que a bandeira empresta / Pra cobrir tanta infmia e covardia!. E no verso seguinte que ele escreve as famosas linhas: Auri-verde pendo da minha terra, / Que a brisa do Brasil beija e balana, / Estandarte que luz do sol encerra / As promessas divinas de esperana... [] Antes te houvessem roto na batalha, / Que servires a um povo de mortalha!. Ou seja, a potica de Castro Alves alcana uma dimenso poltica explcita, sua piedade no alienada e metafsica, mas concreta e histrica. O autor no subscreve um patriotismo alienado e cego em relao injustia.
A piedade de Castro Alves tambm o torna crtico em relao s classes sociais mais abastadas, representados pela figura do sibarita, do comerciante rico e abusado que mora em seu palcio altivo, imenso, / De mosaicos brilhantes embutido. Ele tambm questiona a prpria instituio religiosa oficial do Brasil, cujo sacerdote / As espduas fustiga com o chicote / Ao cativo infeliz.
H um risco, sim, na literatura que dialoga com smbolos religiosos, o risco da artificialidade, da retrica vazia e da alienao. No caso de Castro Alves, no entanto, a poesia sobrevive tentao do formalismo vazio ou do jogo retrico e o poema vira salmo, profecia e orao.
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Nota: Artigo publicado originalmente na edio 347 da revista Ultimato.
pastor, msico e professor de letras na Universidade doExtremo Sul Catarinense (Unesc). autor, em parceria com Joo Leonel, do e-book O Menino e o Reino: meditaes dirias para o Natal. Acompanhe o seu blog pessoal.
- Textos publicados: 13 [ver]
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Site: http://ultimato.com.br/sites/gladircabral/
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